HCC 323 – Eu alegre vou na sua luz
História
323. Eu alegre vou na sua luz
“O Senhor é a minha luz e a minha salvação; a quem temerei?” (Salmo 27.1)
CORRIA O MÊS de outubro do ano de 1973. O domingo estava chegando ao fim. Anoitecia. Valdecir de Souza, rapaz de 20 anos, morava em Taguatinha, Distrito Federal, num dos setores mais pobres da cidade. Como de costume, todos os domingos à noite saía. Não tinha destino certo. Olhava as pessoas, o movimento, tomava uma bebida qualquer, conversava com algum colega que encontrava e voltava para dormir. Afinal, o dia seguinte era dia de trabalho.
Naquela noite resolveu passar em frente a uma igreja dos “crentes”. Não era para entrar. Era só para aproveitar o caminho. Não era por causa de religião, que não tinha. Enquanto caminhava, ia pensando na vida, no que fazer, no futuro, em mil coisas. A Primeira Igreja Batista de Taguatinga, dirigida pelo Pastor Eliseu Soares Figueira, estava encerrando a pregação do domingo, e começou a cantar um hino que tinha uma frase que se fixou na mente de Valdecir: “Oh! quanto cego eu andei e perdido vaguei, longe, longe do meu Salvador”.
Andou mais uns 20 metros e parou para ouvir o resto do hino. Parecia que as palavras eram dirigidas a ele. Voltou, entrou na igreja e ficou em pé, perto da porta. Quando terminou o hino, tinha certeza de que as palavras do hino se referiam especialmente a ele. Compreendeu, naquele momento, que era o cego que andava longe de Cristo, que precisava de uma vida nova, precisava nascer de novo. Não sabia que era o Espírito Santo testificando no seu espírito sobre a necessidade de salvação.
O pastor, depois, deu oportunidade para que se alguém quisesse aceitar a Cristo como Salvador, levantasse sua mão e em seguida fosse aonde o pastor estava. Valdecyr ainda tinha na mente o hino “Oh! quanto cego eu andei e perdido vaguei, longe, longe do meu Salvador”. Decidiu que nunca mais seria um cego e que jamais andaria longe de Cristo. Com a mão levantada foi à frente e encontrou tudo o que tinha procurado em tantos lugares e que não achara. Encontrou a Jesus.1
Este hino de testemunho canta a alegria que o crente tem na luz de Cristo. “Era o predileto do pr. José dos Reis Pereira. Ele dizia: ‘Este hino retrata a história da minha vida’”.2
Na estrofe 1, o autor fala da salvação, de como Cristo o tirou das trevas e o colocou na “sua maravilhosa luz”. Depois, ele testifica da luz de Cristo que “rasga o véu” das nuvens desta vida. Na estrofe 3, enfatiza a “doce comunhão” que o habilita a prosseguir nesta vida com vigor e, por último, na estrofe 4, canta a certeza de um dia estar “face a face” com Jesus, seu Salvador, onde, com certeza o pr. Reis Pereira está. É impossível o crente cantar este hino com tristeza! Estas quatro maravilhosas razões para “andar alegre” dissipam quaisquer nuvens. Cantemo-las com todo o coração, com imensa gratidão pela “luz de Cristo” que nos acompanha do dia da salvação até a eternidade!
O autor, Judson W. Van DeVenter, escreveu estas alegres palavras em 1897, e logo foram musicadas por seu companheiro no trabalho evangelístico, Winfield Scott Weeden.O hino apareceu pela primeira vez em 1898, em duas coletâneas de gospel hymns (ver HCC 112). A feliz combinação da letra e melodia fez este contagiante hino difundir-se ao redor do mundo.
Judson W. Van DeVenter (1855-1939) nasceu perto de Dundee, Estado de Michigan, EUA. Formou-se na Faculdade Hillsdale, no seu Estado. Desenvolveu seus dotes musicais nas escolas de canto (ver HCC 59) das igrejas. Sua grande paixão era a arte. Depois de se formar, ensinou no segundo grau para “financiar seu estudo contínuo no desenho e na pintura”.3 Mais tarde tornou-se o supervisor de artes nas escolas públicas, primeiro da cidade de Sharon, depois em Bradford, Estado de Pensilvânia.
Foi como evangelista pessoal e conselheiro em conferências evangelísticas da sua igreja que Van DeVenter demonstrou seus dons de evangelismo. Diversos amigos o aconselharam a entrar em tempo integral neste ministério. Depois de cinco anos de indecisão, por causa da sua grande ambição de ser um artista reconhecido, Van DeVenter testificou:
Afinal, a hora que mudou a minha vida chegou e entreguei tudo. Um novo dia entrou no meu ser. Tornei-me evangelista, e descobri no fundo da minha alma um talento até então desconhecido. Deus tinha escondido um cântico no meu coração e, tocando uma corda sensível, levou-me a cantar cânticos que jamais cantara antes.4
Esta entrega, que ele expressou no seu muito cantado hino Tudo entregarei (CC 295), o levou a muitos países em conferências evangelísticas, nos anos seguintes. Winfield S. Weeden, com o qual cooperou em alguns hinos, foi seu companheiro e músico neste ministério por muitos anos. Ao se aposentar na Flórida, Van DeVenter foi preletor regular no Instituto Bíblico da Flórida (hoje Faculdade Bíblica Trinity). Um dos alunos deste Instituto foi o evangelista mundial Billy Graham, que falou que Van DeVenter:
Influenciou as minhas pregações. (…) Nós, os alunos, amávamos este bondoso e profundamente espiritual cavalheiro. Muitas vezes nos reunimos na sua casa de verão em Tampa, Flórida, para uma noite de comunhão e cânticos.5
Winfield Scott Weeden (1847-1908) nasceu em Middleport, Estado de Ohio. Estudou nas escolas da cidade. Converteu-se na juventude e, possuindo uma linda voz, começou a ensinar nas escolas de canto (ver HCC 59) nas igrejas. Regente dotado, foi freqüentemente convidado a dirigir a música nas conferências de muitos grupos evangelísticos.
Nos muitos anos que viajou com Judson Van DeVenter, musicava seus textos para hinos. Escreveu numerosos gospel songs (ver HCC 112) e compilou várias coletâneas. Nos últimos anos da sua vida foi proprietário do pequeno Hotel Winona, na cidade de Nova Iorque. Ao falecer, na sua lápide foi esculpido Tudo entregarei, sua melodia mais conhecida.
O dedicado missionário pioneiro Arthur Beriah Deter (geralmente chamado A.B.) nasceu no condado Dade no Estado de Missouri, EUA, em 10 de junho de 1868. Formou-se pela Universidade Baylor, Estado do Texas, e na Faculdade William Jewell. Estudou teologia no Seminário Teológico Batista do Sul (Louisville) e no Seminário Rochester em Nova Iorque. Casou-se com May Scrymgeour, em 1901. O casal iniciou seu ministério no Brasil no mesmo ano.
A.B. Deter sempre foi um líder. O primeiro campo do casal foi em São Paulo, onde chegou em 24 de julho de 1901.
O progresso rápido no estudo de português, o gosto e prazer no trabalho do Senhor, a energia e o entusiasmo dos seus esforços, a idoneidade e preparo para todas as atividades evangelísticas eram prenúncios da longa e feliz carreira deste abnegado mensageiro do evangelho no Brasil. (…) A sua talentosa companheira D. May servia galhardamente com ele na causa do Mestre.6
Depois de cinco meses, o casal foi para Campinas para assumir a direção do evangelismo naquela região. Foi um trabalho difícil e árduo. Além de outras atividades, A.B., com seu colega J.J. Taylor, dava aulas de teologia. “Foi por meio destas classes teológicas que vários obreiros brasileiros conseguiram se preparar para o exercício da Palavra de Deus”.7 Deter também construiu o belo templo da Primeira Igreja Batista de São Paulo, capital.
Em 1903, o casal Deter foi transferido para a Capital Federal. Com a ausência forçada de Entzminger do Brasil (ver HCC 91), Deter o substituiu na direção da Casa Publicadora e em O Jornal Batista, de 1905 a 1907. Aliás, foi na sua gestão que a Casa Publicadora e o Jornal foram devidamente organizados.
Sua filha Edith Deter Oliver conta uma história que demonstra a dedicação dos seus pais. Deter notava que cada vez que os prelos começavam a trabalhar no primeiro andar, a velha casa de madeira começava a tremer. Suas suspeitas foram confirmadas. Um inspetor ordenou que a maquinaria teria de ser mudada para o térreo, onde morava a família Deter. Não havia dinheiro, nem no Brasil, nem na missão, nem no bolso do missionário para esta mudança. O casal não titubeou. Vendeu seus próprios móveis e transportou a maquinaria para o térreo e a família para o primeiro, onde todo mundo se arranjava com caixotes, malas, colchões no chão etc. “A minha mãe fez todos nós sentirmos que essa era uma aventura maravilhosa”.8
Deter foi um forte protagonista para a organização da Convenção Batista Brasileira, antes sonhada por Salomão Ginsburg. Foi em grande parte por seus esforços que a Convenção chegou a ter sua primeira assembléia em 22 de junho de 1907. Deter foi um dos mais ativos participantes desta organização. Foi sob a tutela de Deter que a organização de uma sociedade missionária entre as igrejas nasceu. “Durante algum tempo [Deter] exerceu a Secretaria Executiva da Junta de Missões Nacionais e empreendeu muitas viagens, inclusive a Mato Grosso, onde foi pioneiro.”9
No seu livro Forty years in the land of tomorrow (Quarenta anos na terra do amanhã), publicado postumamente em 1946 por Broadman Press, Deter falou de algumas das suas dificuldades com a igreja católica. Em Nova Friburgo, em 1908, os batistas estavam conduzindo um culto em um dos lindos jardins da cidade. O padre mandou o recado que não podiam ter tal culto e ameaçou expulsar os batistas da cidade se eles se atrevessem a ter um culto público. Com a autorização do chefe da polícia, continuaram o culto:
A sra. Deter estava dirigindo o canto congregacional, e a sra. A.L. Dunstan tocando o harmônio. Cerca de vinte pessoas que estavam assistindo o culto cercaram o órgão e cantaram com toda a força. De repente, veio chegando o Padre Miranda, chefe político do Estado do Rio de Janeiro. Atrás dele estava o filho de um senador. Estávamos cantando Eis os milhões. (…) O padre acabou de chegar ao fim do hino. Não prestei atenção a ele e continuei com a oração. Aí, ele abriu a sua grande boca e gritou: “Povo de Nova Friburgo, chegou a hora de expulsar este povo da cidade”. Tirou do seu bolso um exemplar de O Jornal Batista e leu editoriais que ensinaram salvação pela fé (…).10
Não é preciso dizer que os batistas não saíram da cidade de Nova Friburgo, e que agradeceram a pregação do evangelho lida pelo padre.
Deter tinha muita visão para uma escola de profetas para o Sul do Brasil. Iniciaram-se as aulas, com Deter assumindo a maior parte. Embora não houvesse obreiros para estabelecer um seminário teológico, o caminho estava sendo preparado.
Saindo de São Paulo [em 1911], Deter foi o grande missionário do Estado do Paraná e também de Santa Catarina. Em Curitiba, construiu o templo da Primeira Igreja [Batista], inaugurado em 1924 (…). Por ocasião da Revolução de 1930, ele veio com as tropas do Sul para o Rio na qualidade de Capelão. Foi o primeiro capelão militar batista do Brasil.11
Ajudando a fundar um instituto teológico em Curitiba, Deter foi tão importante na vida da instituição que ela recebeu seu nome. Hoje, está lá o Seminário Batista Paranaense, provendo obreiros em muitas partes do Brasil. Também organizou a convenção estadual, unindo os dois estados vizinhos, Paraná e Santa Catarina. Seu modo de trabalhar era distinto:
O missionário é simplesmente um pastor batista entre os outros pastores batistas: as contribuições vindas de fora devem ser sempre administrados pela coletividade batista e não pelo missionário.12
Depois de visitar aquele campo, Ginsburg lhe chamou de “homem de Deus consagrado, se esforçando para levar avante o reino de Deus naquele campo”.13 A presença de Deter no Brasil, seu trabalho e seu amor pelo Brasil, muito concorreram para a decisão missionária do seu genro, A. Ben Oliver, um dos missionários mais atuantes no segundo meio século da vida batista brasileira.14
Este operoso casal trabalhou 39 anos no Brasil, aposentando-se em 1940. A.B. faleceu em 2 de outubro de 1945, em Dallas, Estado de Texas e May, em 7 de março de 1957 no Rio de Janeiro. Embora não fosse um músico, A.B. Deter traduziu quatro hinos do Cantor cristão. Outro muito conhecido é O alvo supremo (CC 285).
1. SANTIAGO, Adonias R. Carta à autora em maio de 1994
2. REIS, Célia Câmara. Carta à autora em 23 de setembro de 1993.
3. GRAHAM, Billy. Em: BARROWS, Cliff, ed. Crusade hymns stories, Chicago, IL: Hope Publishing Company (hoje Carol Stream), 1967. p.117.
4. Ibid.
5. Ibid.
6. CRABTREE, A.R. História dos batistas do Brasil até o ano de 1906, 2ª ed. Rio de Janeiro: Casa Publicadora (JUERP), 1962. p.287-288.
7. KEY, Jerry S. Educação teológica. Em: MEIN, David, Compilador. O que Deus tem feito. Rio de Janeiro: JUERP, 1982. p.117.
8. OLIVER, Edith Deter. Carta em 29 de nov., 1979. Em: PLAMPIN, Carolyn Goodman. Educação religiosa e publicações, capítulo VI. Em: MEIN. Ibid., p.185.
9. PEREIRA, José dos Reis. História dos batistas do Brasil (1882-1992), 2ª ed. Rio de Janeiro: JUERP, 1985. p.103.
10. DETER, A.B. Forty Years in the land of tomorrow. Em: PAULA, Isidoro de Lessa. Early years in the land of tomorrow: its sources and development. Fort Worth, TX: School of Church Music, Southwestern Baptist Theological Seminary, 1985. p.49.
11. PEREIRA. Loc. cit.
12. MESQUITA, Antônio N. de. História dos batistas do Brasil de 1907 até 1935, v.II, Rio de Janeiro: Casa Publicadora Batista (JUERP), 1970. p.253.
13. GINSBURG, Solomão L. Um judeu errante no Brasil. Trad. SOUZA, Manuel Avelino de. Rio de Janeiro: JUERP, 1970. p.204.
14. PEREIRA. Loc. cit.