Renascimento, Reforma e a Música – Rev. Silas Palermo

A música e toda sua variedade expressiva são, e serão sempre, motivo de discussões acaloradas ou racionalizadas. Pelo fato dela ser adotada por uns ou por grupos inteiros, como se fosse parte de suas essências pessoais, esta música cria afetos quase que irracionais a ponto de discórdias gerarem facções até mesmo brutais dada a passionalidade e apego do sujeito ao objeto musical. Uma relação de ligação intimista, pois ela, a música, reflete o pensamento, as emoções, os desejos humanos, e também uma forma encontrada para expressar-se a si mesmo, um grupo ou cultura.

Pois, é neste campo movediço que os reformadores do século XVI tiveram que pisar; um vespeiro que muitos ainda hoje temem, seja por preconceito ou mesmo ignorância no assunto. De fato, os atuais líderes não devem, ou ao menos não deveriam, ser ignorantes ou ignorarem tal temática, pois assim fazendo relegam a outros desavisados ou mal intencionados, com quase nenhum conhecimento de Deus, das Escrituras, das questões intrínsecas a arte musical, e até cheios de si mesmos, para que, fatalmente estes incautos conduzam desenfreadamente o pensamento e a expressão do canto e da música diante de Deus e dos homens de maneira enganosa ou desprovida de riqueza poética, musical, para não dizer antibíblica.

Dotado e ciente dessa responsabilidade é que os reformadores Martinho Lutero e posteriormente João Calvino tomaram firme posição diante de uma sociedade e da igreja. Inseridos na cultura renascentista, perceberam naquele tempo o que Deus estava fazendo, não foram omissos se alijando dos dons e de tudo o que Deus revelava em sua graça, nem tão pouco se colocaram como pseudo-juízes sem dar nenhuma ação efetiva em resposta ao chamamento divino.

Um repensar sobre o papel da música iniciou-se no renascimento. Algumas questões passam a ser levantadas pelos teóricos musicais, filósofos, poetas e mestres, tais como:

  1. o afastamento do fiel e sua passividade cúltica, ou seja, sua não participação no canto da igreja;
  2. o fato da música não representar e não despertar nos ouvintes paixões diversas;
  3. crítica à música afastada do texto, sua expressão e adequação com a melodia não fornecendo clareza nem sentido.

É neste ambiente cultural dos séculos XV e XVI que os reformadores se encontram. Como homens de seu tempo, imersos na perspectiva sociocultural e demandas da época, absorveram positivamente os ideais renascentistas com discernimento, aproveitando o que era necessário. A exemplo disto, na música, a nova estética dela aliando-se ao texto, como um dos feitos do renascimento, foi prática adotada pelos reformadores, bem como a clareza sonora e expressão musical diante do ouvinte.

Lutero não traz um uniformidade litúrgica musical, antes conserva tanto o latim como o alemão no culto, visando também a educação dos jovens. As igreja maiores são as que possuíam coros que tinham tanto repertório latino e a música polifônica como a nova missa alemã. No esforço de pregar através da música e auxiliar as igrejas do movimento da reforma, sobretudo as pequenas congregações, Lutero publica em 1524 quatro coletâneas corais chamadas de Geistliches Gesangbüchlein (pequeno hinário espiritual) contendo 24 hinos e também o livro dos salmos em alemão. Os hinos publicados eram para serem cantados pela congregação em uma só voz, ou seja, em uníssono, sem acompanhamento e harmonização coral como hoje conhecemos.

A escrita simples, homogênea das vozes, e texto silábico e o canto estrófico em uníssono foi o correntemente usado para canto congregacional em princípio. Uma outra técnica adotada pelos mestres foi o coral em vozes com a melodia no voz aguda, a qual dava maior clareza. A publicação hinos em forma coral simples cresceu no final do século XVI. A prática de usar o órgão como acompanhamento das mesmas vozes corais enquanto a congregação canta a melodia em uníssono surge também, isto propriamente de 1600 em diante.

Algo importante a observar era que a demanda por canções adequadas para a igreja excedeu em muito a oferta. Lutero percebeu esse problema e dilema e comentou: “Ao apreciar a música contemporânea, lamenta que a música secular tenha cantos e poemas muito bonitos, enquanto que a música sacra contenha faul, kalt ding (muita coisa podre, fria)”.[1]

A posição calvinista quanto à música foi mais severa, para não dizer cautelosa, devido a uma desconfiança quanto ao ethos da música e de como a música era mal utilizada nos meios seculares. A posição de Calvino era de preocupação com o poder de música e o mal uso dela “assim como o vinho é vertido num barril, a peçonha e a corrupção são destiladas nas profundezas do coração da melodia”.[2]

A primeira posição firmemente tomada foi a da exclusividade do texto bíblico como única fonte de inspiração poética e do uso direto das Escrituras para serem musicadas. Texto não bíblicos foram descartados. Uma segunda questão calvinista foi de caráter político e de ordem eclesiástica em não entender um coro em posição privilegiada sendo sustentado com músicos profissionais[3]. Contudo as composições e arranjos eram encomendados a célebres compositores da época. Terceira questão foi quanto ao aspecto do culto: o culto tem que ser para todos. A congregação não poderia ser passiva diante de uma música complexa entoada por profissionais ou por um coro isolado, evidenciando assim a doutrina do sacerdócio universal.

Silas Palermo

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[1] DREHER, M. Prefácios e Hinários. In: Obras Selecionadas. São Leopoldo: Sinodal, 2000, volume 7, p. 474.

[2] BLANNING, Tim. O Triunfo da Música: a ascensão dos compositores, dos músicos e de sua arte. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. p.24.

[3] CARPEAUX, Otto Maria. Uma Nova História da Músic. p. 17.

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1 Resultado

  1. Jônatas Fernandes disse:

    Muito Bom!!
    Deus o abençoes Rev Silas!

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