Benjamin Keach e a Hinodia – Rolando de Nassau

Os autores do livro “Uma igreja com propósitos” (São Paulo: Editora Vida, 1997, pp.342-343) e do artigo “Tradição x Tradicionalismo” (“O Jornal Batista”, 17-23 junho 2002, p.3) escreveram sobre Benjamin Keach (1640-1704)  algo que exige esclarecimentos.

O primeiro autor apóia-se na afirmação de que o pastor Keach foi “o introdutor de hinos nas igrejas batistas inglesas” e que somente em 1693 a sua igreja concordou em cantar hinos. Isto, para dizer que a prática hinódica no tempo de Keach era considerada “mundana” e o que atualmente é profano mais tarde será sacro.

Na verdade, Keach foi um dos primeiros pastores a introduzir o canto em congregações batistas na Inglaterra.

Entre suas obras literárias,  encontram-se “The breach repaired in God’s Worship; or singing of Psalms, Hymns and Spiritual Songs, proved to be a holy Ordinance of Jesus Christ” (A lacuna preenchida no culto de Deus; ou o canto de Salmos, Hinos e Cânticos Espirituais, provado ser uma santa ordenação de Jesus Cristo)(1691)  e  “Spiritual Songs” (Cânticos espirituais) (1700). A coletânea “Spiritual Songs” incluiu alguns hinos que eram cantados “em várias congregações dentro e em volta de Londres” (não em todas), o que prova constituírem os hinos de Keach a parte minoritária no repertório do canto congregacional do princípio do século XVIII.

O mal informado escritor de “Uma igreja com propósitos” afirmou que Charles Haddon Spurgeon detestava as canções de Keach, “as mesmas que hoje reverenciamos” (pp.341-342). O comentário de Spurgeon teria sido este: “quanto menos for dito sobre a poesia de Keach, tanto melhor”. O próprio Keach advertiu que nem todos os seus cânticos eram apropriados ao culto …  Com efeito, depois da crítica de Spurgeon, não sobreviveu nenhum hino de Keach que possamos reverenciar …

Por sua vez, o articulista tomou a posição simplista de dizer que os hinos já foram condenados, mas passaram a fazer parte da tradição das igrejas evangélicas. Para ele, acontece agora a mesma situação: os tradicionalistas condenam os ritmos, estilos e instrumentos da música popular. A diferença é que na atualidade o zelo dos Batistas pelas coisas sagradas não é tão grande quanto o dos Batistas do século XVII !

Ambos os autores ignoram a situação em que houve resistência aos hinos na Inglaterra, além de desconhecer a história da Igreja.

Pela Declaração de Indulgência (1672) foi concedido aos Dissidentes o direito de realizar cultos públicos; eles começaram a cantar. Mas o Ato de Prova (1673) cassou-lhes esse direito e obrigou-os a obedecer aos ritos da Igreja da Inglaterra; essa repressão oficial continuou até 1685. Uma nova Declaração de Indulgência (1687) concedeu total tolerância religiosa aos Dissidentes. A Revolução de 1688 contra o rei Tiago II incluía a defesa da liberdade religiosa na Inglaterra: podiam coexistir diversas formas de culto. A Revolução contra o Rei e a Igreja Anglicana constituía um conflito pela liberdade do indivíduo. As leis da Restauração Monárquica (1660-1665) tinham resultado na situação de as congregações dissidentes reunirem-se às escondidas; evidentemente, não poderia existir canto, vocal ou congregacional. Mas em 1687, as congregações dissidentes passaram a realizar abertamente os seus cultos.

O autor de “Uma igreja com propósitos” (p.343) diz ter ficado impressionado com a “incrível  paciência” de Keach: esperou 22 anos (1671-1693) para introduzir hinos em sua igreja. O que realmente aconteceu foi o lento processo político que liberou os Dissidentes para cultuar e cantar à sua maneira. Eles começaram a cantar em 1671.

No final do século XVII, quando as Denominações Dissidentes (Presbiterianos, Batistas e Congregacionalistas) afastaram-se da Igreja da Inglaterra, havia consciente e generalizada objeção não somente à música instrumental na igreja, mas também ao canto das melodias dos salmos metrificados.

A controvérsia entre os Batistas da Inglaterra, entre 1670 e 1700, era se deveriam ou não cantar durante o culto divino. Na época, eles  estavam divididos em dois grupos: Batistas Gerais (que criam estar a salvação disponível para todos os pecadores) e Batistas Particulares (que adotavam a doutrina calvinista da predestinação – a salvação disponível para certos pecadores escolhidos).

Os Batistas Gerais não aceitavam a liturgia da Igreja oficial, incluídos os cânticos e as orações rituais; eram contrários à composição de cânticos e ao canto congregacional; consideravam promíscuo um canto do qual participavam crentes e incrédulos; discordavam que as palavras e as melodias compostas por um homem fossem cantadas por toda a congregação; não queriam facilitar a introdução nas congregações de fórmulas rituais de canto e de oração.

Alguns Batistas Particulares, embora apoiassem a doutrina calvinista, eram favoráveis aos hinos de composição humana, além dos salmos e cânticos registrados na Bíblia. A maioria dos Batistas Particulares sustentava o uso de salmos métricos, não de hinos. Benjamin Keach deixou os Batistas Gerais e foi para o arraial dos Batistas Particulares …

Verificamos, pelo exposto, que a adoção da hinodia nas igrejas evangélicas decorreu não somente da interpretação doutrinária, mas também da situação política na Inglaterra.

A isso, devemos acrescentar que, para evitar os cânticos de Keach, os evangélicos ingleses fizeram muito bem, preferindo cantar os hinos de Isaac Watts …

Rolando de Nassau

(Publicado em “O Jornal Batista”, 03 nov 2002, p. 4)
Doc. JB-661 – Música – No. 661
© Rolando de Nassau – Usado com permissão

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