100 Anos da Harpa Cristã (1922-2022) – Pr. João Antônio de Souza Filho
100 anos da Harpa Cristã (1922-2022)
(Exclusivo para Hinologia Cristã – www.hinologia.org)
Quando me converti nas Assembleias de Deus em 1953, – a Harpa Cristã estava entrando na meia-idade – acreditava que os verdadeiros hinos sacros estavam somente na Harpa Cristã e que todos os demais hinos de outros hinários eram cópias mal produzidas dos cânticos, até que…
Em 1969 comecei a estudar e a pesquisar sobre músicas universais no grande estúdio de produção da KGEI – uma emissora missionária da Far East Broadcasting Company em San Francisco, CA – que transmitia o evangelho para as nações fechadas ao evangelho no mundo. Bernhard Johnson me colocara lá!
Ali, rodeado por cerca de 10 mil LPs mergulhei na música das nações passando a conhecer desde as balalaikas russas aos tangos argentinos; da música sertaneja de Los Índios Tabajaras – índios brasileiros da Ilha do Bananal que havia emigrado para os Estados Unidos – das salsas cubanas e colombianas às músicas amazônicas e nordestinas e dos ritmos do brasileiro Sérgio Mendes nos Estados Unidos.
Meu interesse foi despertado quando assobiava – do caminho da sala do Telex para o estúdio – o hino belíssimo da Harpa Cristã, nº 36. “Da linda pátria estou bem longe”. O engenheiro de som me disse:
– Johnny assobiando uma música de cabaré?
– Nada disso, respondi. É uma música sacra de nossos hinários de autoria de Justus H. Nelson.
Pacientemente retirou um LP da estante de músicas blues e souls americanos e me mostrou a canção de Stephen Foster, Old Foks at Home que era cantado nos cabarés de Nova Orleães. Realmente, a música era a mesma do hino 36 da HC e que está no Cantor Cristão nº 484. Bem, no Cantor Cristão eles publicam o nome do autor da música original, e o título da canção, S’wanee River.
Ao observar que muitos hinos dos hinários têm letras cristãs colocadas em músicas de autores que “os crentes” chamariam de mundanos foi preciso descobrir que música é música em qualquer lugar do mundo, portanto, ela é universal, e o que a torna uma música sacra apropriada para o culto cristão é a letra. Veja o hino 205 da Harpa Cristã, originalmente uma canção de roda das escolas inglesas e americanas, e o 212 Os Guerreiros se Preparam, hoje música do hino nacional das Ilhas Fiji de autoria de Charles Austin Miles. Originalmente em inglês era Dwelling in Beulah Land – Habitando na Terra de Beulá escrito e lançado em 1911. Até hoje não descobri quem copiou de quem, visto que as Ilhas Fiji eram protetorado britânico até 1970. Paulo Macalão, meu grande amigo, pois no púlpito de sua igreja preguei tantas vezes, colocou uma letra nada condizente com a original e se tornou o hino de guerra das Assembleias de Deus, aliás, com excelente letra. [1]
Quando comecei a ouvir as crianças cantando nos pátios das escolas a melodia do hino 205 da HC minha mente entrou em ebulição. Só então descobri que a canção fora gravada em filmes americanos e também pelos Beatles. (O número 205 é a música de uma canção que faz parte do folclore escocês, entoada por crianças em cantigas de rodas e gravada pelos Beatles antes de começarem a ter sucesso como grupo. “My Bonnie lies over the ocean, my Bonnie lies over the sea; my Bonnie lies over the ocean, ó bring back my Bonnie to me”. Por ser antiga – já em 1925 houve a filmagem de um espetáculo tendo esta música de fundo; Ray Charles a gravou etc. Paulo Macalão deve ter ouvido e gostado!).
Não podia entender que aqueles hinos que a congregação cantava em minha igreja, eram a música da Ilha Fiji, dos hinos nacionais da Inglaterra, da Alemanha, músicas populares do Havaí (123 HC), cantigas de roda das escolas e do folclore americano, agora entoadas como se fossem cânticos sacros no Brasil. Hoje quando um líder denominacional elogia e fala dos belos hinos sacros do hinário tenho que ser franco em responder que nem todos os hinos dos hinários são sacros, porque, a sacralidade de um cântico não está na música, no ritmo nem nos instrumentos musicais usados no culto a Deus, mas na letra. E se a letra de uma canção ou hino não falam de Deus, da obra de Jesus e do Espírito Santo, o cântico não se enquadra na qualidade de “sacro”.
A música, por ser universal pode ser usada em qualquer cultura e consagrada para Deus com uma letra Cristocêntrica. Numa época em que uma canção demorava meses e até anos para atravessar os oceanos, muitos missionários e escritores dos Estados Unidos usaram músicas populares e colocaram nelas letras cristãs. Hoje isso não é mais possível porque as informações estão na palma da mão de qualquer crente. Até porque acredito que o Espírito Santo tem um repertório inesgotável à disposição de seus filhos que não precisam usar a música de outros autores.
Hinos que hoje são considerados sacros tiveram como base músicas populares da época!
O historiador Philip Schaff registrou o período da Reforma Protestante com estas palavras:
“Os hinos se tornaram ao lado da Bíblia em alemão e dos grandes sermões uma poderosa arma evangelizadora, tratando do pecado e da necessidade da redenção. Os hinos eram usados em marchas e desfiles, impressos em folhetos e espalhados para a população cantar nas ruas, casas, escolas e igrejas. Lutero tem o mérito de dar ao povo alemão em sua própria língua a versão da Bíblia e o hinário […]. Ele mesmo era músico e compôs a melodia de vários de seus hinos. Ele é o Ambrósio da igreja alemã com suas poesias e músicas congregacionais. Escreveu trinta e sete cânticos, a maioria datada de 1524” [2]. Seu cântico mais conhecido é Castelo Forte baseado no Salmo 46 e surgiu num momento de grande tribulação no desastroso ano de 1527, sendo impresso pela primeira vez em 1528.
Lutero viu a necessidade de compor novos cânticos e salmos numa linguagem simples e acessível ao povo, diferentemente dos cânticos católicos romanos que apelavam para a adoração a Maria. Escrevendo para seus amigos em 1523 fez um apelo: “Tenho planos […] de criar salmos no idioma alemão para o povo, portanto, estou à procura de poetas. Mas, meu desejo é que sejam em linguagens simples e comuns para que cada campesino entenda (o cântico) sem perder a beleza e a pureza poética”. Um ano depois escreveu: “Desejo, seguindo o exemplo dos profetas e dos pais da igreja fazer salmos populares, isto é, hinos sacros, para que a palavra de Deus cantada habite no meio do povo”.[3]
Os hinos criados por Lutero foram feitos a partir de músicas bem populares, com melodias que na época eram fáceis de serem cantadas, inda que hoje nos pareçam difíceis de serem entoadas. Conforme Philip Schaff, “mais de cem cânticos foram escritos naqueles tempos por Lutero e outros autores. Obviamente que muitas de suas músicas por serem de origem popular foram rejeitadas e desprezadas pelos religiosos da época”.
Nem todos os hinos com a abreviação PLM foram escritos por Paulo Leivas Macalão; eram traduções diretas do espanhol ou de versões de outros hinários. Deveria colocar, isso sim, o autor da música e ao lado, letra ou versão de Paulo Macalão. Não gostaria de ver o cântico que compus sendo gravado ou impresso com o nome do cantor como se ele fosse o autor, como fazem muitos cantores ao gravarem os hinos dos hinários e de outros autores. Por exemplo, “Na presença dos Anjos a Ti cantarei Louvores”, que assinei em 1982 foi gravado por um cantor como sendo de autoria de Frances Crosby, apenas para dizer que era de domínio público. Felizmente, depois de muita disputa judicial conseguimos reverter a autoria.
Mas, não são apenas os hinos da Harpa Cristã que foram copiadas de músicas populares de vários países; também o hino “Sonda-me ó Deus”, que era uma “canção Maori de despedida” que o Dr. J. Edwin Orr colocou uma letra cristã com tradução para o português de Werner Kaschel. Está no Cantor Cristão 578. A história desse cântico pode ser lida no artigo de Henriqueta Rosa F. Braga da Revista Ultimato de 04/02/2022.
Então, muitos cânticos de outros autores constam como sendo de PLM. Ora ele apenas fez uma versão e o autor original tem de ser mencionado. Ora, poucos são os que têm acesso à verdadeira história dos hinos, agora apresentadas nas edições comemorativas da Harpa Cristã. Acredito que está na hora de uma ampla reforma na autoria dos hinos nas harpas cristãs sem música, para se distinguir as que são realmente música e letra de PLM e outros autores, pois na HC com música consta o autor da música e o autor da letra ou versão em português.
A Harpa Cristã parece desconsiderar, nas edições pequenas e populares, a grande quantidade de hinários das mais diversas denominações, dando a entender que ela é única e exclusiva das Assembleias de Deus, quando, na realidade é cópia de vários hinários, no entanto, a Harpa Cristã, como os demais hinários contribui para a edificação do corpo de Cristo no Brasil, independentemente da denominação.
Parabéns aos nossos pais na fé do passado que se esmeraram e, dentro de seu limitado conhecimento deixaram como legado este hinário para a denominação. Foi abrindo a Harpa Cristã que aprendi o abecedário da fé evangélica pentecostal.
Pr. João Antônio de Souza Filho
© 2022 de João Antônio de Souza Filho – Usado com permissão
[1] CPAD – Edição Comemorativa dos 80 anos da HC.
[2] SCHAFF, Philip, History of the Christian Church, Vol. 7 pp. 244- 245
[3] McCUTCHAN, Robert Guy, citando Miles Coverdale, Goostly Psalms and Spiritualle Songes, 1539