Cronologia do Desenvolvimento dos Hinos – [Hinos Gregos] – Joaquim Junior
2. HINOS GREGOS
Os hinos gregos são os mais antigos da era apostólica, e não é de se estranhar que os primeiros hinos tenham sido escritos em grego, já que essa língua era falada em Antioquia, onde os discípulos de Cristo foram chamados cristãos pela primeira vez, segundo o texto bíblico de Atos dos Apóstolos 11:26 (Faustini, 2018, p. 3). Esses hinos viajaram do Oriente para Roma, África, Espanha e outras partes do Império Romano e realmente eram cantados em grego por comunidades cristãs porque o latim ainda não havia se tornado de uso comum (Julian, 1957, p. 642).
Quanto ao estilo, os hinos gregos foram fortemente influenciados por características dos salmos e da poesia hebraica: estrofes, acentos musicais, rimas, acrósticos, canto antifonal, uso litúrgico de versos destacados dos salmos, dentre outros (Julian, 1957, p. 456-458). Quanto ao uso dos hinos, a carta de Plínio ao imperador Trajano revela que “os cristãos da primeira era costumavam se reunir antes do amanhecer e cantar um hino a Cristo como Deus, em turnos, um após o outro” (Julian, 1957, p. 641). Além disso, Plínio parece provar que os hinos eram cantados no momento da Celebração da Ceia do Senhor ou Eucaristia (Carmen Christo quasi Deo dicere invicem secum).
Hinos do Novo Testamento
Nas referências de Paulo a respeito de se cantar hinos, ele relaciona o canto a encher-se do Espírito, aprender as Escrituras, louvar a Deus e expressar gratidão, conforme lemos em Efésios 5:18-20 e Colossenses 3:16. Nesses textos, além de distinguir três tipos de canções de louvor: salmos (ψαλμοῖς), hinos (ὕμνοις) e odes ou canções espirituais (πνευματικαῖς ᾠδαῖς), Paulo revela que o canto de hinos era algo comum na igreja cristã primitiva. E isso foi confirmado por escritores dos primeiros séculos, como Tertuliano, Orígenes, Plínio e Eusébio (Apel, 1958, p. 421; Julian, 1957, p. 641).
Além disso, a forma, os assuntos e o padrão rítmico de alguns trechos das cartas de Paulo, de Tiago e de Pedro sugerem que essas passagens poéticas possivelmente eram trechos de hinos conhecidos pelos primeiros cristãos (Julian, 1957, p. 458; Faustini, 2018, p. 5).
Um exemplo é Efésios 5:14 que deve ter sido tirado de um hino batismal ou de penitência que a igreja primitiva cantava: “Desperta, ó tu que dormes, e levanta-te de entre os mortos, e Cristo te iluminará”. A forma poética de Filipenses 2:6-11 também chama a atenção: “pois ele, subsistindo em forma de Deus, não julgou como usurpação o ser igual a Deus; antes, a si mesmo se esvaziou, assumindo a forma de servo, tornando-se em semelhança de homens; e, reconhecido em figura humana, a si mesmo se humilhou, tornando-se obediente até à morte e morte de cruz. Pelo que também Deus o exaltou sobremaneira e lhe deu o nome que está acima de todo nome, para que ao nome de Jesus se dobre todo joelho, nos céus, na terra e debaixo da terra, e toda língua confesse que Jesus Cristo é Senhor, para glória de Deus Pai”.
Nas epístolas pastorais de Paulo a Timóteo, algumas declarações de fé são relacionadas a fragmentos de hinos (Julian, 1957, p. 458). “Fiel é a palavra e digna de toda aceitação: que Cristo Jesus veio ao mundo para salvar os pecadores, dos quais eu sou o principal” (1 Timóteo 1:15) seria parte de um hino sobre ‘redenção’. Já o versículo “Aquele que foi manifestado na carne foi justificado em espírito, contemplado por anjos, pregado entre os gentios, crido no mundo, recebido na glória” (1 Timóteo 3:16) seria parte de um hino à ‘Encarnação e Triunfo de Nosso Senhor’. E “Fiel é esta palavra: Se já morremos com ele, também viveremos com ele; se perseveramos, também com ele reinaremos; se o negamos, ele, por sua vez, nos negará; se somos infiéis, ele permanece fiel, pois de maneira nenhuma pode negar-se a si mesmo” (2 Timóteo 2.11-13) seria um fragmento sobre ‘as glórias do martírio’. Mas 1 Timóteo 6:15-16, também poderia ter sido um hino: “a qual, em suas épocas determinadas, há de ser revelada pelo bendito e único Soberano, o Rei dos reis e Senhor dos senhores; o único que possui imortalidade, que habita em luz inacessível, a quem homem algum jamais viu, nem é capaz de ver. A ele honra e poder eterno. Amém!”.
Outros dois exemplos de possíveis hinos pré-existentes são: “Quando, porém, se manifestou a benignidade de Deus, nosso Salvador, e o seu amor para com todos, não por obras de justiça praticadas por nós, mas segundo sua misericórdia, ele nos salvou mediante o lavar regenerador e renovador do Espírito Santo, que ele derramou sobre nós ricamente, por meio de Jesus Cristo, nosso Salvador, a fim de que, justificados por graça, nos tornemos seus herdeiros, segundo a esperança da vida eterna” (Tito 3:4-7) e “Toda boa dádiva e todo dom perfeito são lá do alto, descendo do Pai das luzes, em quem não pode existir variação ou sombra de mudança” (Tiago 1:17).
Primeiros Hinos Gregos
O hino grego mais antigo totalmente preservado é Φῶς Ἱλαρόν (Phos Hilaron). Esse hino era cantado pelos cristãos primitivos quando acendiam os castiçais ao entardecer e, por isso, foi chamado por Basílio de Cesaréia (330-379) de ação de graças no acendimento das velas (Encyclopaedia Britannica; Julian, 1957, p. 458). É cantado até os dias de hoje na liturgia das Vésperas de Igrejas Orientais e em algumas anglicanas e luteranas. Ele foi registrado pela primeira vez entre os séculos III e IV, mas já era considerado como um hino antigo nessa época. A origem precisa é incerta e controversa porque Basílio e outros teriam atribuído a autoria a Antenógenes (169). O hino foi traduzido para o inglês no século XIX por diversos clérigos e poetas proeminentes como John Keble do Movimento Oxford, Henry Wadsworth Longfellow e Robert Bridges. João W. Faustini (2018, p. 15) fez a tradução para o português em 1977 sob o título “Brilho cheio de alegria”.
O Papiro Oxyrhynchus XV 1786 é o manuscrito mais antigo conhecido de um hino cristão que contém tanto o texto quanto a notação musical. Trata-se de 5 linhas de um hino à Trindade escrito no final do séc. III d.C (Pöhlmann; Martin, 2001, p. 190-192). Esse papiro foi descoberto em um antigo depósito de lixo em Oxyrhynchus, no Egito, em 1918, e foi publicado pela primeira vez por Arthur Surridge Hunt e Henry Stuart Jones em 1922. Diversos pesquisadores contribuíram para restaurar as lacunas no texto e para a análise métrica e musical do hino. Segue abaixo uma tradução para o português, a partir do inglês apresentado por David Tripp e Peter Wheeler (1989, p. 96):
“[Cantem um só canto todos os povos] e todas as obras maravilhosas de Deus; \\ [Terra, tome sua parte] e não deixe as estrelas brilhantes ficarem em silêncio; \\ [As montanhas devem apresentar seu louvor e] todas as torrentes retumbantes dos rios. \\ E enquanto cantamos [com alegria] ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo, \\ Que todos os poderes respondam em voz alta: Amém, Amém. \\ O poder e a adoração [e a majestade pertencem sempre a Deus,] \\ O único Doador de tudo o que é bom. Amém, amém.”
Figura 2: Hino Cristão – Papiro Oxyrhynchus XV 1786 (Oxford Papyrology).
Dentre os primeiros hinos do cristianismo também está Στόμιον πώλων ἀδαῶν (Stomion Polon Adaon) que foi registrado no Pedagogo de Clemente de Alexandria (170-215). O hino é uma poesia de ação de graças para louvar o Instrutor (o Logos) com uma confiança infantil em Cristo, como o Pastor, o Pescador de Almas, a Palavra Eterna e a Luz Eterna (Faustini, 2018, p. 13-14; Julian, 1957, p. 456). Em português, existe o hino Terno e Gentil Pastor, de João Wilson Faustini, cuja letra foi extraída dessa poesia de Clemente de Alexandria.
Combate a Heresias
Os primeiros hinos gregos vieram dos cristãos que moravam na Síria, Mesopotâmia e Pérsia. Mas o movimento de escrever hinos recebeu um forte impulso depois de 200 d.C. (Apel 1958, p. 421) entre os gnósticos, uma seita cristã helenística na Síria, quando Bardesanes e seu filho Harmonious, moradores de Edessa, escreveram um hinário gnóstico com frases versificadas de salmos. Aparentemente, os hinos de Bardesanes faziam muito sucesso, mas também eram vistos como um perigo por expor doutrinas consideradas heréticas da doutrina ortodoxa porque os agnósticos misturavam filosofia grega, mitologia oriental e os ensinamentos de Jesus, além de usar ritmos contemporâneos (Nassau, 2022). Esses hinos gnósticos se tornaram muito populares e acabaram por desviar muitos cristãos sírios porque crianças jovens brincavam cantando suas heresias e muitos dali passaram a crer no que cantavam (Faustini, 2018, p. 16). O canto de hinos tornou-se então um assunto de grande controvérsia, sujeito à aprovação e desaprovação por séculos. Existe até um registro do Concílio de Antioquia em 269 d.C. tratando da objeção de hinos pelo bispo Paulo de Samosata (Apel 1958, p. 421).
No século IV, Efraim, o Sírio, foi a Edessa determinado a lutar contra os heréticos que moravam ali. Para isso, ele escreveu muito hinos ortodoxos para uso em casa ou em público, usando a própria arma de Bardesanes – as mesmas melodias seculares, mas com sã doutrina bíblica (Faustini, 2018, p. 16). Em Edessa, ele serviu como diácono e também foi autor de uma grande variedade de sermões, poesias e hinos, sendo chamado de o pai da hinódia cristã (Encyclopaedia Britannica). Ele teve muito sucesso ao treinar corais de jovens e, com isso, a cidade inteira se reunia para ouvi-los. A partir da grande influência dos hinos de boa doutrina de Efraim, as doutrinas heréticas de Bardesanes foram aniquiladas.
Outra doutrina herética que foi muito difundida através dos hinos foi a do arianismo. Ário de Alexandria (256-336) e os seus seguidores negavam a divindade de Cristo e refutavam a Trindade. Esses ensinamentos foram condenados no Concilio de Niceia, no ano 325 d.C. e diversos teólogos empreenderam esforços para disseminarem o trinitarismo, inclusive a partir dos hinos. Esse foi o caso de João Crisóstomo que até organizou procissões para cantar hinos da boa doutrina. No combate ao arianismo, houve até derramamento de sangue, mas finalmente os arianos foram proibidos de cantar seus hinos heréticos em público (Faustini, 2018, p. 18).
A hinódia grega continuou a se desenvolver e diversos outros hinos foram escritos por bispos como Sinésio de Cirene (378-430), Anatólio de Alexandria (séc. III) e André de Creta (650-712). Mas João de Damasco (676-780) é considerado o maior escritor de hinos gregos (Faustini, 2018, p. 20-29).
Joaquim Junior
8 de abril de 2024
Referências:
ANDERSON, W. Ancient Greek. Hymn. Oxford University Press, 20 jan. 2001. Disponível em: https://doi.org/10.1093/gmo/9781561592630.article.13648. Acesso em: 2 jul. 2023.
APEL, W. Gregorian Chant. Bloomington: Indiana University, 1958, p. 34,421-429.
ENCYCLOPAEDIA BRITANNICA, INC. Hymn. Disponível em: https://www.britannica.com/topic/hymn. Acesso em: 1 jul. 2023.
FAUSTINI, J.W. O Despontar da Hinódia Cristã. 2018. Disponível em: http://www.hinologia.org/o-despontar-da-hinodia-crista-rev-joao-wilson-faustini/. Acesso em: 21 jun. 2023.
FOLEY, E.; BANGERT, M.P. Worship Music: a Concise Dictionary. Collegeville, Minn: Liturgical Press, 2000.
JULIAN, J. A Dictionary of Hymnology: Setting Forth the Origins and History of Christian Hymns of All Ages and Nations. 2. ed. rev. London: John Murray, 1957, p. 457-458,640-641.
MCKINNON, J.W. Music in Early Christian Literature. Cambridge: Cambridge University Press, 1987.
NASSAU, R. DE. Estudo de Hinos. 2022. Disponível em: http://www.hinologia.org/estudo-de-hinos-rolando-de-nassau/. Acesso em: 1 jul. 2023.
OXFORD PAPYROLOGY. P.Oxy. XV 1786. Christian Hymn with Musical Notation. Oxford: University of Oxford, 1 out. 2022. Disponível em: https://portal.sds.ox.ac.uk/articles/online_resource/P_Oxy_XV_1786_Christian_Hymn_with_Musical_Notation/21132973. Acesso em: 7 abr. 2024
PÖHLMANN, E.; MARTIN, L.W. Documents of Ancient Greek Music: The Extant Melodies and Fragments. Oxford: Clarendon Press, 2001.
TRIPP, D.; WHEELER, P.. Die älteste christliche Hymne mit Noten – als Thema eines Seminarvorhabens in Liturgiewissenschaft. In: Jahrbuch für Liturgik und Hymnologie. Band 32, 1989. Disponível em: https://www.jstor.org/stable/24200904. Acesso em: 06 abr. 2024.
WATSON, J.R.; HORNBY, E. The Canterbury Dictionary of Hymnology. Canterbury Press, 2013. Disponível em: https://hymnology.hymnsam.co.uk/. Acesso em: 28 jul. 2023.