Bill Ichter, o Hinólogo – Ivo Seitz
Conviver desde menino com o pr. William Harold Ichter (Bill) foi um presente de Deus, para ajudar a formar os rumos da chamada, o tempo de preparo e o ministério de missões e música. Ele dá igual atenção a todos. Missionário pioneiro, percorre o Brasil, ensinando as igrejas e incentivando talentos e vocações.
Tudo com humildade. Anda junto com jovens seminaristas para um curso de aperfeiçoamento em regência com o maestro Isaac Karabtchevsky. Compõe o coro da Associação de Canto Coral do RJ, onde obedece às exigentes maestrinas Cleoffe Person de Mattos e Elza Lakschevitz Assunção. Nos eventos evangelísticos, como campanhas e cruzadas, está pronto tanto para assumir a regência coral como simplesmente cantar misturado à multidão. Promove cursos intensivos, como os Institutos de Inverno, acampamentos e seminários, descobrindo novos músicos.
Não se vê como autor, escritor ou compositor, mas a necessidade o desafia e se sai bem em tudo isso. Prepara material apropriado para cada setor. “Muitos acordeonistas evangélicos, por causa da escassez de músicas sacras especialmente preparadas para acordeão, procuram de um modo ou doutro fazer o seu próprio arranjo na hora da execução do hino”, escreve na apresentação de Acordes Celestes, do pernambucano Laury Bernardes da Silva: “Este jovem, sim, é um verdadeiro acordeonista”. Acompanha um disco Long Play de 10 polegadas (1963). Novos repertórios são editados para corais, vozes femininas, masculinas e grupos juvenis.
Bill, conhecendo o que a história tem para ensinar, aceita o convite de O Jornal Batista para escrever, e logo se passam 10 anos da abençoada coluna Canto Musical, com suas biografias, lançamento de hinos, reportagens e respostas aos leitores. Ao longo do caminho ajunta material para um livro pioneiro, Vultos da Música Evangélica no Brasil. Nele vemos como Deus usa vidas vindas da Alemanha, Bahia, Escócia, Estados Unidos, Inglaterra, Itália, Letônia, Maranhão, Pernambuco, Polônia, Portugal, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e São Paulo. Na apresentação, a renomada professora Henriqueta Rosa Fernandes Braga atesta: “Focalizando os baluartes da hinódia brasileira e portuguesa, com o descortino dos que se acham convictos de que somos um em Cristo´, lembrou também os que lutam pela correta interpretação dos hinos sacros não só do ponto de vista musical e artístico, que é importante, mas principalmente encarando-os como pregação sonora”.
(Abro parênteses: Bill Ichter é um estudioso do idioma. Diverte-se com os “baluartes”, “descortino” da apresentação do livro, assim como o “palinuro”, termo registrado por Ervino Kaschel Jr. neste mesmo livro, ao destacar a fluência no português do missionário William Edwin Entzminger. Inspirado, Bill arrisca palavras novas, como “Conspícua” Clarinada Capixaba, em O Jornal Batista).
Ele não se submete à aridez da cronologia. Caça informações que ampliem o alcance do texto para apresentar o lado humano dos personagens que entrevista:
De Arthur Lakschevitz, regente e criador de edições para coros, revela que o autor do consagrado Coros Sacros mantinha uma pequena oficina gráfica em casa, para melhor servir às igrejas.
De Elza, filha do pr. Arthur, professora e regente respeitada, destaca um fato bem pessoal: aquela moça tão profissional acha tempo para compor todas as músicas do próprio casamento.
De Salomão Luiz Ginsburg, polonês, expulso de casa ao se tornar cristão, podemos acompanhar a determinação ao viajar para a América, trabalhando em navio de transporte de cavalos. No Brasil, Ginsburg estuda 100 palavras novas por dia. E resolve aproveitar a recém anunciada liberdade religiosa, pregando corajosamente na rua.
Ficamos sabendo que nas Ilhas Madeira, Robert Reid Kalley tem que refazer todo seu trabalho, destruído por um incêndio criminoso. Já no Brasil, Kalley é o primeiro a usar a imprensa secular para divulgar a mensagem do evangelho.
Mostra como um jovem presbiteriano, João Wilson Faustini, é o músico incumbido de organizar o grande coral da Cruzada Billy Graham em São Paulo.
Bill nos conta que o maestro Guilherme Loureiro, conhecido pelo hino Como é longe Canaã e pelo Coral Excelsior, RJ, além dos hinos, compõe música de orquestra, oratórios e óperas.
De Philip Paul Bliss, regente de cruzadas evangelísticas na América do Norte, registra que morreu em acidente ferroviário junto com a esposa. Mas sua bagagem foi recuperada, com originais de hinos. Seu sucessor na obra, James McGranahan põe a música em um deles, Cantarei de Jesus Cristo (Cantor Cristão 399). Mais tarde, George Coles Stebbins, o escolhe para uma das primeiras gravações de hinos no recém-inaugurado fonógrafo de Thomas Alva Edson.
De Manoel Avelino de Souza sentimos de perto a dor ao ver o templo da Primeira Igreja Batista em Niterói, RJ, cair sob uma tempestade, justamente quando muita gente persegue os crentes e anuncia que o diabo impedirá aquela obra. Em sua angústia, não pela obra em si, mas pela repercussão que o acidente trará, Avelino lembra de Romanos 8.31-32, e escreve Temos por Lutas Passado (CC 454; Hinário Para o Culto Cristão 502). O hino reanima a igreja, que completa a construção.
Bill anota que o conhecido hino Firme nas Promessas tem letra e música de Russell Kelso Carter, um engenheiro e autor de livro sobre Fórmulas Trigonométricas.
Aprendemos a razão de alguns autores escolherem o anonimato. Edward Perronet, de Saudai o Nome de Jesus esconde suas iniciais no início de cada linha do hino, em acróstico, o que só será decifrado mais de meio século depois.
Thomas Hastings, da música de Rocha Eterna (CC 371; HCC 307) usa diferentes pseudônimos e explica que faz isso “para valorizar as obras com nomes estrangeiros”.
O próprio Bill Ichter conta que usa o nome Nelson Mariante quando da escolha da música para a Campanha Nacional de Evangelização, Cristo é a Única Esperança (CC 581, HCC 526): como o irmão convidado para a tarefa não poderá cumprir o prazo, Bill ora e assume a responsabilidade. Por ser membro da equipe, acha mais ético concorrer incógnito. O hino é escolhido, mas só depois de algum tempo o compositor é identificado.
Bill mostra que há autores reconhecidos por um só hino, como Joseph Mohr e Franz Xaver Gruber de Noite de Paz (CC 30; HCC 91), enquanto outros produzem centenas, como Benjamin McKinney (Cristo Satisfaz Minha Alma HCC 542), que brinca com isso: “Muitas composições não acabadas foram para a lata de lixo, e muitas publicadas deviam ter ido para o mesmo lugar!” Vemos também que o maior repertório é Charles Wesley, acima de 6.500 hinos.
Muitas histórias de hinos estão associadas a bravas lutas na saúde e limitações físicas. Há quem enfrente a cegueira, total ou parcial: Fanny Jane Crosby, Ira David Sankey, James Ellor (da melodia de Saudai o Nome de Jesus), Frances Ridley Havergal (moça preparada, pianista, dominando o inglês, francês, alemão, italiano, grego e hebraico, mas não aprovada para seguir ao campo missionário por dificuldades na visão). William Runyan, autor da música de Tu És Fiel, Senhor, que tem que deixar o pastorado por motivo de surdez.
Bill Ichter comenta: “Muitas vezes ficamos demasiadamente preocupados com pequenas derrotas na vida, ou mesmo com um fracasso no trabalho. Parece fácil demais esquecermos que, quando completamente entregues a Deus, Ele pode transformar derrotas em vitórias, fracassos em sucessos e usar tudo para Sua honra e glória. Por isso, Romanos 8.28 sempre tem sido o meu versículo predileto. Muitas vezes, quando menos se pensa, Deus está agindo em nossa vida.” E narra a vida de Robert Stanley Jones, missionário no Brasil de 1920 a 1932, no Recife. Jones conversa com Benjamin McKinney, quando sua junta missionária define que ele não voltará ao Brasil, por sua precária saúde. Jones está triste, mas conformado: “A Cristo, meu Mestre, irei seguir, por onde me conduzir”. Impressionado, naquele mesmo dia McKinney escreve Por Onde Me Conduzir (HCC 467), hino que tem ajudado muitos a tomar a decisão certa.
Bill Ichter reconhece o esforço dos tradutores, às vezes esquecidos. Tece elogios a Paulo de Tarso Prado da Cunha (Piauí, 1928 – Rio Grande do Sul, 2019), na letra de Quão Grande És Tu: “A mais fiel e mais perfeita, em relação aos critérios do pensamento original, poesia, métrica, acentuação, linguagem”. (Abro parênteses: acho que em uma edição revisada, Bill Ichter acrescentaria que o pr. Paulo de Tarso nunca se conformou com a mudança da comissão do Hinário de “Quão Grande” para “Grandioso”). Comentário semelhante sobre o tradutor está no hino A Ti Seja Consagrada Minha Vida (CC 296; HCC 429): “[A] letra original foi muito fielmente traduzida para o português por Leônidas Philadelpho Gomes da Silva. Não é comum encontrar uma poesia tão bem e fielmente traduzida como esta”.
Bill Ichter, com todo a sua experiência e autoridade, presta atenção às pessoas em si. Valoriza cada talento, descobre e divulga projetos. Uma prova singular é a sua determinação em descobrir a origem da música do hino de Minha Pátria Para Cristo, cantado com emoção por todos os crentes brasileiros. Ele consegue uma pista, com uma colega missionária que havia trabalhado no Brasil: um jornal dos batistas do Texas tinha publicado o hino My Prayer, em 1916. Logo depois, Salomão Ginsburg traduz Minha Oração. Mas William Entzminger decide adaptar uma letra com sentido patriótico, e escreve Oração pela Pátria (CC 439; HCC 603 com harmonização de Ichter). Bill entrevista o diretor do jornal, que localiza a edição antiga, e assim ficamos conhecendo a autora: Emily Willis Lindsey. Bill consegue ainda testemunhos e fotos, de pessoas da família e amigos de Lindsey. Depois de 60 anos, o hino tão apreciado tem sua trajetória recuperada.
Louvamos a Deus pelas vidas e seus legados. Continuemos participando dessa história, para a glória de Deus!
Nas fotos:
Porto Alegre RS 06.09.2019
© 2019 de Ivo Augusto Seitz – Usado com permissão